segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

DESAMIGAR-SE existe?

Por Claudia Nunes

Na rua, Lucas não tinha rumo: ele desamigou-se. Depois de tanto tempo, ele desamigou-se. Ele não sabia apontar quando e o porquê, mas ele desamigou-se e o vazio era grande. E o pior: ele não podia falar para ninguém. O que iriam pensar? Ele era um homem: ‘Perdeu? Deixa pra lá!’ Só que ele desamigou-se e não sabia o que aconteceu e em que chão dar o primeiro passo. Ninguém o avisou sobre isso. Nunca escutou história sobre ‘desamigamento’, então o que fazer? Sem estratégia ou memória, o jeito era dobrar a esquina e procurar outras vidas ou outros dias: a desarrumação era total.

Diante de um bar, ele entra: ‘Oi, traz uma cerveja...’ - ele precisava de algum sentido. Mudanças de foco e de atenção não acontecem em um estalar de dedos. Algo já vinha acontecendo e, com a sensação de vazio e algumas cervejas, as cenas foram saindo da memória. Ele devia ter previsto ou ao menos se preparado: os sinais foram bem claros... Por onde começar?

Desamigar-se não dói, incomoda, afinal estão destruídos confortos, hábitos, orgulhos, comodidades, todas as ligações ‘de verdade’. E, no mundo atual, a desconexão é projeto de invisibilidade certa. Só que não há o que fazer: é cair, levantar e viver outras rotinas. A sonoridade do tempo agora é um ‘rock in roll’ pesado em que ele precisa reencontrar harmonias e/ou sentidos em notas musicais mais ‘new age’.

Lucas observa a rua e a rua o observa e afirma: ‘eu avisei... não havia espontaneidade... simplicidade... verdade... desamigue-se logo... você precisa viver’. Espontaneidade... Que coisa séria... A espontaneidade é fruto da confiança no/do outro; é a possibilidade positiva de uma pessoa SER quem é sem senões ou mesmo intenções. Se isso está em tensão ou no mínimo, o animal ser vivo humano se reprime, observa e vai embora mesmo... Lucas soube então: a senha do desamigar-se está na perda da demonstração simples do amigar-se em diferentes linguagens / ambientes. E os defeitos, antes encarados como simples particularidades, ‘ganham’ força e verdade. ‘Como não vi antes?’ – ele pensa. Um amigo sempre lhe disse: ‘amigar-se acontece quando conseguimos conviver com os defeitos do outro. Se assim não for, não há cola, futuro, tempo passando, confiança, nada’. Lucas entende isso agora: ele não viu, mas sentiu e ignorou...

Ele resiste ainda, afinal sua memória era muito amiga, mas entende tudo agora. Nunca foi cego, apenas aumentou o grau das qualidades e seguiu em frente. Valia / Valeu a pena! Na rua, no bar, com cervejas, o corpo foi se tranquilizando e a mente se coordenando: desamigar-se começa com a perda da espontaneidade porque, junto, se perde a tolerância. Não importa mais ter cuidados para falar ou agir = sinceridade grosseira.

Com menos sensibilidade, eles foram duros entre si, se machucaram demais e falaram e não SE falaram. E o tempo passando foi cruel... Ao observar as mesas do bar, Lucas vê diversos temperos e pensou: os temperos da tolerância são a empatia e o respeito; e desamigar-se é trocar ambos pela frieza, pelo descaso, pela impaciencia e outras emoções bem picantes: as chateações jorraram em ondas ininterruptas. É... Lucas foi ‘desamigado’ por / pela intolerância. O ‘vamos tentar’ foi substituído por ‘não adianta’ ou ‘deixa pra lá’.

Porém Lucas vai se vendo melhor. Sem nenhuma superioridade ou envolvimento com vozes alheias, ele vai se vendo melhor. Há carinho, afeição, bons momentos nas lembranças, mas a magia (no) mundo real perdeu a força. Ele sabe que não é o primeiro. Ele sabe que amigos vão e vem. Ele sabe que todos podem desamigar-se por causa do desencanto e consequentes pelas distrações (outras atrações positivas ou negativas; interessantes ou interesseiras). Mas ele vai se vendo melhor. E as horas passam.

Quando a noite cai, Lucas está no mesmo lugar e diante do mesmo copo, só que agora refeito e calmo. Ele movimenta os ombros num ‘tanto faz’ ou ‘fazer o que?’, paga a conta e volta para casa. Lá existe uma agenda de trabalhos e amigos ainda encantados. Dentro da colcha de retalhos que reflete sua vida, desamigar-se trouxe muitos incômodos, mas também abriu espaços para outros ‘amigar-se’ surpreendentes e valorosos. E Lucas vai se permitir!

‘Desamigar-se’ é o desígnio da experiência do ‘permitir-se’.

Claudia Nunes


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