quarta-feira, 22 de junho de 2011

CISNE NEGRO: uma leitura

Hoje eu vi o filme “Cisne Negro”. Não é aterrorizante, é uma história surpreendente! Fiquei tensa até o final porque me predispus a vê-lo dentro de um (pré) conceito: soberba. Afinal eu conhecia a história. Sinceramente fiquei chocada. O diretor captou as possibilidades de a alma ser recortada ou reprimida por diferentes motivos e de como essa atitude transfigura uma pessoa quando a volúpia do mundo exige outra performance de maneira imediata. A vida por trás de um cisne (metáfora do sucesso) pode ser de total penúria e conformismo, mas diante dos holofotes ganha nuances quase esquizofrênicas de força, coragem e dor.
Natalie Portman representa uma moça assolada pela ditadura materna porque precisava ir além do corpo de baile de uma companhia de balé. Nina precisava realizar o sonho da mãe a qualquer preço, mesmo que sob o disfarce da delicadeza, do carinho e do afeto exacerbado e castrador. Em torno de Nina, uma vida focada no balé, numa dança que exigia perfeição para aparecer e poder ser escolhida como a Rainha Cisne. Afinal, a mãe deixara um possível estrelato por causa da gravidez inesperada. Uma inconseqüência cuja culpa pesa sobre as costas de Nina.
Como em “O Diabo Veste Prada”, há um jogo perverso em cujo amor físico está fora de questão. A loucura é tanta que Nina parece se transformar no personagem que luta para representar: o Cisne Negro. Oprimida pela mãe, ela cria defesas psicológicas contra a vontade de sair do caminho pré-traçado: ser o cisne principal em nome da mãe. Nina não mais existe sem isso. Insegurança, timidez, ansiedade, tudo serve para que ela não viva sua própria vida. Todos são símbolos do medo: medo de não ser perfeita; medo de decepcionar; medo do fracasso, e isso dentro do sonho de outros. É uma marionete e sua alma está aprisionada num momento do tempo passado.
Nós, espectadores, mais do que nos assustarmos com certas cenas de duplo sentido ou em que aparecem duas personagens, reconhecemos que o diretor trabalha, nas entrelinhas, com o próprio ser humano em cuja personalidade vive o bem e o mal no limite. Este ser humano definha como indivíduo. Este ser humano foi talhado e retalhado para reconhecer e justificar sua existência cheia de antolhos. Quando em casa, há a opressão para o sucesso materno; no teatro, Nina sofre opressão inversa: ela precisa expor, na dança e no palco, uma delicadeza e um vigor sensual quase ao mesmo tempo. Ser frágil e ser dominadora na ponta dos pés e nos seus sentimentos.
No palco, duas irmãs gêmeas, Cisne Branco (Odete) e Cisne Negro (Odile), lutam pelo amor de um príncipe. Do Cisne Branco, ela é a figura perfeita, mas do Cisne Negro, segundo o diretor da peça, falta-lhe emoção, vibração, sensualidade. Falta-lhe o desejo. E sem tomar conhecimento de sua vida fora dos palcos ou dos ensaios, ele a provoca de todas as formas, afinal o Cisne Negro não tem pudores. Ela precisa se arriscar, ser o que é e algo mais, muito mais, e com isso transparecer a paixão do Cisne Negro. Ele provoca sua fúria e sua paixão.
O filme é uma história de transformação pessoal profunda cuja personagem Nina precisa sair de sua intropecção e penetrar na extroversão rapidamente. É preciso perceber que o desejo de perfeição se dá também em lugares escuros e, com o sucesso, ninguém olha mais para a escuridão. Indefesa, ela ensaia, ensaia e ensaia. Não há brilhos sem sombras e Nina sente isso. Todos querem tocar e atrair o lado mais escuro da mente humana: seu inconsciente, aquele que não reconhece limites ou ameaças. Nina é perturbada pela vontade, curiosidade, risco, mundo fora de si. Nina está em desequilíbrio.
Então ela entra num dilema: perfeição ou autoconhecimento? Ambas são naturais dentro do processo de amadurecimento humano, mas para que a tensão permaneça no filme e as cenas sobrepostas se justifiquem, ela é colocada numa encruzilhada e precisa escolher. Em casa e nos ensaios ser o Cisne Branco? Na rua, através do corpo ou quando escolhida, ser o Cisne Negro? Com a mãe, estar Cisne Branco? Com o diretor da peça, se dar ao Cisne Negro? Nina não existe mais, só suas sensações, imaginações e pensamentos. Nina é puro fluido dentro deste mundo caótico...
De repente, sem tempo para pensar, seu mundo está de cabeça para baixo e suas certezas questionáveis. Nina vive prazeres e relações diferentes, porém todos são abruptamente interrompidos por um elemento da realidade. Ela sente o gosto de outra forma de vida, mas o medo é bem maior. Nina atravessa a vida sob coitos interrompidos e estes interrompem o reencontro consigo mesma. Nina é puro medo. Tudo entra em duplicidade em sua vida, mas nada se amalgama. Tudo perde o controle e Nina não mais se reconhece em lugar nenhum. Casa e ensaios se desdobraram em muitas outras possibilidades de encontro com o prazer, mas nada a potencializa. E para Nina não há possibilidade de uma “terceira margem do rio” (Guimarães Rosa): ela vai escolher um dos lados.
Em desarmonia, Nina não segura a onda avassaladora do desejo do eu e aceita um mundo quase surtado. Nina é uma bomba-relógio. Perder-se tudo porque a mente se perde. Ao tocarem seus maiores esconderijos mentais, mãe e diretor distorcem suas certezas e criam uma personagem sem um amanha. Nina vai morrer...
Mesmo o que considera sonho (idolatria a bailaria que a substitui) é mentira. É uma nova versão da metáfora estabelecida pelo filme: Cisne Branco = nova e jovial promessa; já Cisne Negro = a estrela decadente e autodestrutiva. E ela não suporta isso. Ela reconhece a sua idolatria como fonte de morte: aqui surge o Cisne Negro. Aqui lembrei o filme “A Malvada” com Beth Davis. Idolatria como forma de matar e ocupar o lugar do outro. E para isso é preciso sentir e inflingir dor; é preciso ignorar uma das realidades impostas e Nina ignora a mãe na expectativa de voar além das sombras. Isso! Nina é uma sombra cheia de nuances cujo investimento em si mesmo é nulo.
Com o papel em mãos, Nina entra numa espiral decisiva em sua vida. As privações da vida entram em choque com diferentes experimentações, mesmo ilusórias. Desejos reprimidos, sonhos selvagens e atitudes impensáveis destroem todos os seus mecanismos de defesa e a atraem em direção às trevas. Sua conquista é sua ruína. Nina vai morrer. O espectador sabe disso. E uma frase reverbera em todo momento: “Perfeição técnica não supera a necessidade da emoção”.
Sua neurose é radical ainda que tenha aberto a caixa de Pandora um pouquinho. Porém, segundo alguns psicólogos, a neurose não suporta a loucura e a loucura transcende a neurose: Nina vai mesmo morrer. Tudo foi demais em sua vida. Nem o tempo tem o poder de apagar marcas tão profundas produzidas pela castração e centenas de frustrações. Seu abismo está bem próximo. Num átimo de insanidade cega, ela incorpora a perspectiva sombra (Negra) e tira de cena sua maior inimiga. Lily é desdobramento dos seus maiores conflitos internos e polariza sua escolha final: a Rainha Cisne.
Ao se sentir livre de qualquer bloqueio, Nina assume o prazer da dança, de ocupar seu espaço sem constrangimentos, de ser livre para ser livre. E a platéia confirma tudo isso: ela é a idolatrada agora.
No palco a volúpia da conquista. No camarim, o desmascaramento: a faca não atravessara o corpo de Lily, e sim o dela. Em seu delírio, Nina se autodestruiu. Ao retornar ao palco para o ato final, Nina é o lindo Cisne Branco que perdeu sua paixão e que se mata por isso. Perfeição dupla! Em meio aos histéricos aplausos, ela se joga feliz do alto de sua vida sufocante e caótica. Ela está em paz e diz: “Foi perfeito. Perfeito”.
O filme “Cisne Negro” vale para que percebamos que “nosso pior e maior inimigo somos nós mesmos” ou, como Sartre disse uma vez: “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”.
Nunca mais verei “O Lago dos Cisnes” do mesmo jeito!

Referências:

segunda-feira, 20 de junho de 2011

UM CORREDOR À VIDA


Todos dizem que as cidades ganharam arranha-céus e as pessoas, grande distancia. Mesmo arrebanhadas em limites territoriais específicos, não há indicativo de relação. Em prédios de muitos andares, os corredores sentem a presença da vida, mas também são pontos em que todos estão devidamente separados. É o público estabelecendo particularidades e sem permissão a qualquer invasão. Cada um em seu espaço e sem problemas ou sem a necessidade de administrá-los por causa do alheio. Em prédios de muitos andares e muitos apartamentos por andar, as paredes não negam as vidas, as formas de vida, mas só por trás delas. Em cada parede, uma porta; e, em cada porta, uma luta para se esconder das possíveis necessidades dos outros. Todavia Amanda estabeleceu novos rumos para a sua vida. Deprimida, com síndrome do pânico, ela começava a ficar cansada das suas 04 paredes e de conviver com sua imaginação sobre a vida dos outros do outro lado da porta. Era o além das portas que lhe dava forças para se manter viva. Era uma passividade inútil, ela sabia, porque ela estava fora do movimento do mundo.
Por recomendações médicas, durante 02 meses, ela se divertiu decorando e redecorando seu apartamento, falando ao telefone, acessando a Internet, lendo livros, escutando música e escrevendo cartas. Cartas? Sem querer, ela se pergunta: “escrevo para quem?” Só tinha como companheiros uma vizinhança fantasma e barulhenta. “Escrevo cartas para quem?” – repete ela. Sem resposta, a porta da rua cresceu em seus olhos. Não há diálogo sem o outro. Não há emoção sem o outro. “Eu não vou viver sem o outro!” Alguém precisava ler suas cartas... Alguém precisava conhecer seus pensamentos... Ela queria reconexão e muita emoção.
Ansiosa, tomou um banho, amarrou o cabelo, passou batom e ficou frente a frente com sua porta. Silencio. Seu corpo e seus ouvidos estavam tensos e atentos. Seu coração estava acelerado. Seus braços estavam super-pesados. Ainda o silêncio. O prédio não ajudava, nenhum pulso, nenhum som.
Num impulso, Amanda ataca a maçaneta e abre a porta. Um vento de múltiplos odores acerta seu rosto e penetra sua pele e sentidos. Seu mundo se embaraçou todo. Além das portas, só portas e uma claridade incômoda. Quem leria suas cartas? Ainda sob os efeitos do seu gesto, Amanda sente sua angustia aumentar: quem leria suas cartas? É impressionante o vazio do corredor, apenas a ventilação era sentida. Que mundo é esse?
No fim do corredor, uma janela. Muitas luzes desfocaram seus olhos. Que felicidade! Essa era a vida que desejava: animada, positiva, divertida.
Ela estava calma e deitada no chão do play. Só conseguiu ouvir: “Gente, é Amanda, a moça doente do 4º andar, chamem os bombeiros!”
Ela era conhecida...

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Entrevista EDMEA SANTOS - Programa Salto para o Futuro (11/1/11)


Edméa Santos  Realizada em: 11/1/2011 

Atuação: Professora adjunta da Faculdade de Educação da UERJ, atua no PROPED (Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ). Obras: SANTOS, Edméa. Articulação de saberes na EAD online: por uma rede interativa de conhecimentos em ambientes virtuais de aprendizagem. In: Marco Silva. (Org.). Educação Online. 3 ed. São Paulo: Loyola, 2011, v. 1, p. 219-232; SANTOS, Edméa; RICCIO, N. C. R. Desenho didático aberto: uma experiência de educação online na formação do docente superior na UFBA. In: Daniela Melará Barros; Claudia Neves; Filipa Barreto de Seabra; José António Marques Moreira; Susana Henriques. (Org.). Educação e Tecnologias: reflexão, inovação e práticas. Lisboa: Universidade Aberta de Lisboa, 2011; SANTOS, Edméa. Desafios da cibercultura na era da mobilidade: os docentes e seus laptops. Educação e Cultura Contemporânea, v. 7, p. 27-42, 2010; SANTOS, Edméa. A Informática na Educação antes e depois da web 2.0: relatos de uma docente-pesquisadora. In: RANGEL, Mary; FREIRE, Wendel. (Org.). Ensino-Aprendizagem e Comunicação. Rio de Janero: Wak Editora, 2010, v. 1, p. 107-129; SANTOS, Edméa; Silva, Marco. Desenho didático para educação online. Em Aberto, v. 22, p. 105-120, 2009.

Cibercultura: o que muda na Educação

Salto – Em que medida é possível definir cibercultura? 

Edméa – Vamos começar conceituando, porque, contemporaneamente, devemos evitar definir as coisas. Cibercultura, em poucas palavras, é a cultura contemporânea, mediada pelas tecnologias digitais em rede. Na verdade, muitos dizem que as tecnologias são protagonistas, mas há um processo híbrido entre todo o desenvolvimento científico, o próprio uso das tecnologias e seu desenvolvimento, e os usos que os praticantes, os sujeitos culturais, fazem dessas tecnologias. Em poucas palavras, é a cultura contemporânea mediada por tecnologias digitais em rede.

Salto – Há um equívoco muito comum na interpretação deste conceito de cibercultura, que diz respeito à ideia de que as tecnologias são as grandes protagonistas desse processo. Você poderia falar um pouco disso? 
Edméa – O equívoco está em colocar a tecnologia na centralidade. Mas não há cibercultura, não há cultura contemporânea sem as tecnologias digitais em rede. As tecnologias digitais em rede estão na base dos processos produtivos, não só do modo de produção, mas nos modos de conhecer. (…) As tecnologias são artefatos culturais produzidos pelo próprio homem, então, a relação é híbrida, os sujeitos se constituem produzindo e na relação com essas tecnologias. Não dá para trazer as tecnologias para a centralidade sem considerar o humano, a cultura e a sociedade mais ampla.

Salto – O importante é essa relação entre os sujeitos e as diferentes tecnologias digitais?
Edméa – Exatamente. E, por outro lado, também não concordo com aquele discurso só do uso, de que os seres humanos protagonizam tudo, inclusive as próprias tecnologias. Porque sem elas não teríamos os fenômenos da cibercultura em emergência.

Salto – O que contribui para que estejamos todos inseridos nesta cibercultura?
Edméa – Tendo em vista que as tecnologias digitais em rede estão na base da sociedade, elas formam a infraestrutura, estruturam os processos de aprender, de ensinar, de pensar, de conhecer, de produzir, e não dá para pensar a sociedade contemporânea sem as tecnologias digitais, sem os seus usos e os fenômenos que emergem dessas tecnologias. Quando o assunto é educação, não é uma questão de usar as tecnologias apenas porque estão na moda e porque a escola agora tem laboratório de informática, tem computadores móveis, e sim porque está na sociedade, porque as tecnologias digitais estão na base da sociedade, formam a infraestrutura,

Salto – Quando se fala de tecnologia hoje em dia, fala-se na velocidade impressionante das mudanças: novos equipamentos, novos artefatos culturais são criados a todo instante e quase imediatamente passam a fazer parte do nosso dia a dia. Como você analisa a relação entre essas  mudanças tecnológicas e as transformações nos currículos?
Edméa – A grande diferença dessas tecnologias digitais em rede, principalmente as tecnologias digitais que conectam a cidade com o ciberespaço, é que essas tecnologias não só estruturam a base material, mas  também toda a base simbólica e de linguagem da sociedade. As mesmas tecnologias estruturam processos de aprendizagem, porque a tecnologia digital não só produz, como também difunde informação em rede, e ao interagir com essas informações em rede, com outros seres humanos, os sujeitos transformam essas informações em conhecimentos, que uma vez materializados digitalmente, viram novas fontes de informações para outros sujeitos. Então, as mesmas tecnologias que estão na base dos processos produtivos de conhecimento também produzem subjetividades. O mais interessante de pensar o digital em rede, para a educação, é que a educação está muito mais próxima da cena cultural e do universo cultural onde estão e atuam os praticantes, os sujeitos, de uma forma geral, que fazem uso dessas tecnologias, para além dos espaços formais de aprendizagem. Então, ninguém pode dizer hoje que não aprende ao interagir com a internet, com todas as redes sociais, com todas as comunidades de aprendizagem, não só de forma autodidata, fazendo seus próprios percursos de navegação e de interatividade, mas também interagindo com o outro, uma vez que nos aproximamos destes tantos outros que estão no ciberespaço, por identificações da nossa própria subjetividade.

Salto – Quando se fala na velocidade das mudanças no mundo da tecnologia, como fica a questão de rever o currículo por conta das mudanças tecnológicas?   
Edméa – Cada vez mais nós, professores, não podemos perder de vista que o próprio conhecimento não é algo que se adquire. É algo que é construído e tecido junto, em tantas redes educativas, inclusive a cidade com todos os seus equipamentos, com todos os artefatos culturais, a própria internet, o próprio ciberespaço, e essas redes todas estão na escola, de uma forma ou de outra. Pensar o currículo escolar, contemporaneamente, está além daquela noção tradicional de currículo, como algo que vem pronto de um Ministério da Educação, ou de uma Secretaria de Educação.

Salto – E o fato de estarmos todos inseridos nesta cibercultura trouxe também pressão por mudanças no currículo escolar?
Edméa – Esta afirmativa de que estamos todos inseridos na cibercultura é problemática. Na verdade, estamos mesmo, uns mais incluídos, mais autores, mais protagonistas, com mais cidadania; outros excluídos. A exclusão, muitos falam em exclusão digital, nós preferimos falar de exclusão cibercultural, que é muito mais do que não ter acesso às tecnologias em si, mas é não ter acesso aos usos, às possibilidades de autoria, ao uso cidadão. Então, estamos todos inseridos, e a educação tem um papel fundamental que é exatamente inserir como protagonista, como praticante, fazer com que o sujeito lance mão desses usos para se autorizar, para autorizar o outro, viver efetivamente a transformação da cidade.

Salto – A cibercultura trouxe novos desafios para o currículo nas escolas?
Edméa – Totalmente. Principalmente porque o entendimento sobre a noção de currículo, para muitos educadores, para muitas escolas e até para muitos gestores, é que o currículo é o conjunto de conteúdos que precisam ser ensinados. É toda aquela listagem de conteúdos preestabelecidos, que vem dos ministérios, das secretarias, aquela noção que centra o currículo na escola, como se a escola e a universidade fossem os únicos lugares, os únicos espaços de ensinar e de aprender. Mas se entendemos currículo como essa construção cultural, social, produzida na escola, pela escola, mas em comunicação com outras redes educativas - até porque conhecimento não é aquilo que adquirimos ouvindo, ou simplesmente  consumindo signos, mas é algo que é tecido com o outro, e em rede - a cibercultura traz em potência um entendimento diferente sobre currículo. Porque a cibercultura não é o movimento cultural que fica apenas no ciberespaço, a partir do que os sujeitos culturais produzem, com a mediação das tecnologias digitais em rede, mas a cibercultura é a cultura contemporânea que conecta várias redes, via mediação do digital. E isso não fica só no ciberespaço, mas afeta totalmente a cidade, todos os equipamentos culturais, inclusive a escola e a universidade.

Salto – Houve de fato grandes transformações nos modos de se pensar e de se fazer educação a distância?
Edméa – Completamente. Principalmente porque educação a distância, em poucas palavras, é uma modalidade educacional onde os sujeitos da comunicação e da aprendizagem não estão no mesmo espaço, nem sempre ao mesmo tempo, construindo o conhecimento, nessa relação espaço-temporal. E para que aconteça educação, efetivamente, é necessário a mediação, e a mediação de tecnologias, porque o conteúdo e as situações de aprendizagem são mediadas por tecnologias; nas clássicas práticas de educação a distância, essa mediação é feita por mídias de massa, mídias que separam o polo da emissão dos polos, diversos, da recepção. Temos tecnologias que não fazem mais esta dicotomia emissão e recepção, são tecnologias, inclusive, que nos ajudam a pensar, ou a ressignificar essa noção de distância. Porque com a internet, com as redes sociais, com os ambientes virtuais de aprendizagem, com as tecnologias de videoconferência, e tantas outras tecnologias em rede, estar geograficamente disperso não é estar distante. Isso muda completamente a noção de currículo e de prática pedagógica na educação a distância.

Salto – Por isso, os pesquisadores falam em educação online.  Há diferenças em relação àquele modelo, àquela proposta de educação a distância?
Edméa – Completamente. A noção de educação online que eu venho desenvolvendo há 10 anos, ela é inspirada nas práticas culturais, comunicacionais - e por que não falar pedagógicas - da cibercultura. As pessoas envolvidas com a cibercultura se encontram, buscam redes, formam grupos, acessam informação, mapeiam informação e produzem outros saberes, articulando várias mídias. Não só individualmente, mas com o outro, via essa mediação. Então, uma vez que estamos geograficamente dispersos, mas que podemos nos comunicar com o outro via rede, via ambientes virtuais, e softwares de redes sociais, acho que não é mais tão interessante falar em distância. Estar geograficamente disperso não é estar distante, uma vez que as tecnologias digitais em rede nos conectam com o outro, com as suas produções culturais, com suas produções científicas, com várias mídias, vários signos diferenciados. Então, na literatura, é muito comum encontrarmos outras expressões como: e-learning, EAD via internet, só que precisamos 'separar um pouco o joio do trigo', porque simplesmente usar o digital em rede para mudar a noção de educação a distância é pouco. Porque se não mudarmos, não fizermos outra forma de comunicação, podemos continuar fazendo educação via internet, chamando de educação online, mas efetivamente esse currículo ainda está baseado na separação entre os polos da emissão e da recepção.

Salto – Dessa forma, não basta adotar um nome, um título para essa modalidade, é preciso rever posturas, é preciso rever currículo. E quando falamos em rever posturas, falamos diretamente com o professor, que é quem está nos assistindo. O que muda para o professor quando falamos de educação online e das novas demandas trazidas pela cibercultura? 
Edméa – Na educação a distância convencional, mediada pelos meios de massa, a exemplo dos impressos, dos próprios audiovisuais, a autoria do professor está concentrada na autoria do material didático. Então, muitas vezes o professor produz o desenho didático de uma situação de aprendizagem, ele produz o conteúdo, e é esse conteúdo que vai fazer a mediação entre o saber científico, a instituição e o aluno, que está lá na outra ponta, recebendo, interagindo com isso tudo. Lucia Santaella nos ajuda a pensar que há mediação mesmo, porque onde há signo, há uma mediação. Ler um livro, interagir com o material impresso, ou simplesmente interagir com um meio audiovisual, essa interação traz mediação, porque o que está ali naquele material é linguagem, são signos. Mas essa interação, com a mídia de massa, ela fica restrita ao sujeito que lê, e àquele signo que está ali, provocando o sujeito. Mas uma vez que temos comunicação em redes síncronas e assíncronas, não só temos acesso aos signos...

Salto – Quando falamos de interfaces síncronas ou assíncronas, estamos falando de recursos que estão disponíveis nesses ambientes virtuais, recursos que exigem que todos os envolvidos estejam participando, ao mesmo tempo, são as interfaces síncronas. E as assíncronas são atividades que podem ser chamadas de atemporais.
Edméa – Exatamente.

Salto – Como o fórum, por exemplo. Tem uma postagem ali, o cursista acessa, pode acessar depois de uma semana, ou de um dia.
Edméa – Exatamente. E a própria internet, ela se constitui efetivamente destas interfaces. E assim que educadores, tecnólogos, pensaram que era possível simular salas de aula via internet, apareceram os ambientes virtuais de aprendizagem, que são essas interfaces que já existiam na internet, não em tanta quantidade na fase Web 1, mas agora muito mais na Web 2, Web 3. Essas interfaces hoje são reunidas numa única plataforma e, mais contemporaneamente, têm misturado as plataformas. Temos vivenciado situações de aprendizagem usando ambientes virtuais e mesclando com  outras interfaces encontradas na internet, a exemplo dos softwares de redes sociais. É possível fazer educação online hoje com o Facebook, por que não? Mas quando se coloca a questão do desafio do professor, na EAD clássica ele se preocupava em produzir o conteúdo para o aluno interagir com este conteúdo, e a lógica da comunicação estava centrada no autoestudo. Com a internet, com a cibercultura, nós não lançamos mão só do autoestudo, mas sobretudo da aprendizagem colaborativa em rede. E isso muda tudo. O professor, além de produzir este conteúdo, articulando mídias, fazendo convergências, ele tem o papel fundamental, que é o papel de fazer a mediação nessa comunidade de aprendizagem, garantindo a densidade dos conteúdos, fazendo novas provocações, arquitetando novos percursos de interatividade. Então, o papel do professor, efetivamente, é um papel de mediador de todo este processo de ensinar e aprender.

Salto – Como é a atuação do GEPDOC (Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura)? E de que forma essa pesquisa tem contribuído para a busca de novos sentidos para a educação online?
Edméa – Todas as palavras têm políticas de sentido. Então, docência e cibercultura,  por que docência? Porque entendemos, como Paulo Freire, que não existe docência sem discência. Estamos contemplando o ato de ensinar e de aprender como docência, considerando que ensinamos e aprendemos muito com os sujeitos e, ao formar, nós também nos formamos; e a cibercultura, porque é exatamente o nosso tempo. É a cena cultural do nosso tempo, que tem nos apresentado outras possibilidades de ensinar, de aprender, para além da formalidade, legitimada pela modernidade, para além dessas aprendizagens construídas na escola e na universidade. Até porque escola e universidade também já não são mais as mesmas, diante desta cena cultural, mediada por tantas redes. Nosso grupo de pesquisa se preocupa em investigar estes fenômenos da cibercultura, como as pessoas interagem produzindo conhecimento e, efetivamente, cultura. E como podemos nos inspirar nestas práticas de autoria e de rede, para repensar e ressignificar esse currículo escolar e o da própria universidade. Nosso grupo se preocupa especificamente com a formação de professores. Temos investido bastante na formação de professores, e nos inspirado exatamente nesse movimento da cidade, do ciberespaço, para instituir, quem sabe, outras práticas pedagógicas.

Salto – Para acessar o GEPDOC – www.docenciaonline.pro.br
Edméa – Esse site é um ambiente virtual de aprendizagem, aberto, porque qualquer internauta pode espiar, pode reutilizar os conteúdos e se inspirar nas situações de aprendizagem. Nesse site temos nossos projetos de pesquisas, as produções de todo o grupo, e nossas práticas online – na graduação presencial, na graduação a distância, e também na pós-graduação, onde desenvolvemos juntos a linha de pesquisa "Redes Educativas, Cotidianos e Processos Culturais" no PROPED (Programa de Pós-Graduação em Educação), pesquisas que procuram articular a educação e essa cena cultural do nosso tempo.  

INVEJA E FOFOCA

Ontem eu estava com uma amiga ao telefone. Papo vai, papo vem, chegamos a seguinte conclusão: fofoca e inveja estão no mesmo campo semântico e em todas as nossas redes sociais. Parece que as pessoas não estão bem consigo mesmas ou com o que conquistam na vida. Elas atravessam o outro com olhares de cobiça cujas capas podemos encontrar em certas delicadezas, sorrisos (sempre apáticos) e disponibilidades. Então estávamos certas: fofoca e inveja são emoções costuradas em todas as linhas do que chamamos ‘relação’.
Nós duas supomos que essas emoções circulam o ser humano e se revelam quando o sucesso do outro (de qualquer tipo ou grandeza) age como um incômodo. Sem a coragem de assumir limitações e diferenças, nós podemos ser sufocados pela energia repressora do outro. E ficamos sem entender porque estamos sem sono, de mau humor, sem concentração e com dores desconhecidas.
Minha amiga se diz assustada. Ela me revelou que está em um processo profissional ascendente há semanas, mas tem percebido diferenças nos comportamentos dos colegas de trabalho. É uma sensação que a deixa mais vulnerável, indecisa, insegura. Em conseqüência, seus projetos começam a sofrer pequenas perturbações ou pequenos senões em seus processos de implantação. Uma chateação!
Depois de escutar, falei: “Amiga, é importante entender ou reconhecer que o ser humano tem uma tendência a querer agradar e ser agradado pelos menos vez por outra. É uma questão de dar e receber carinho e atenção. Só que só podemos nos responsabilizar por nossas atitudes e ações. Não dá pra entrar na energia do outro e acreditar na promessa de retorno. Antes de nos olharmos como seres humanos”, - eu disse a ela – “temos que nos reconhecer como selvagens e os selvagens sempre sobrevivem, entende?”
É ilusão acreditar que cedendo ao outro, seremos aceitos e amados como imaginamos. Esta ilusão inaugura obrigações, cobranças, expectativas e apegos incoerentes. Hoje eu sei disso e minha amiga também precisa entender. A doação emocional na esperança de um retorno causa mais raiva e desagrados do que alegrias. Ai, com certeza, ingratidão será a palavra de ordem e fará morada na mente como realidade. Neste sentido, o respeito aos pontos de vista e experiências do outro serão completamente ignorados.
Minha amiga atribuía aos colegas os problemas que vinham ocorrendo em seu trabalho porque, provavelmente, esperou demais das pessoas. Nem todo mundo está preparado para vivenciar e compartilhar o sucesso do outro. Este sucesso pode expor suas (dos outros) deficiências e dificuldades. E antes de se aceitarem como são, algumas pessoas podem ‘sabotar’, até mesmo com suas energias (força do pensamento, a vida do outro.
Sem pensar, - digo ainda à minha amiga – “cuidado porque nem todo mundo é tão bom ou tão mal quanto parece”. Susto! A força ou o alcance desta frase nos pegou de surpresa. Ao reconhecer que a fofoca e a inveja são quase siamesas, há coerência, mas quando podem ser reconhecidas com certa facilidade nos ambientes nas quais imergimos diariamente, tornam-se assustadoras e ambíguas. “Ambígua?” – perguntou sem entender, minha amiga. “Sim querida, ambígua.” – reafirmei – “É uma frase que demanda outro sentido: você, por exemplo, pode estar querendo ser vista como superior devido ao seu sucesso veloz. E isto também é um problema”.
Em toda relação lidamos com as diferenças e por causa delas nós relacionamos, em princípio, emocionalmente: ao abrir espaço às proximidades alheias, é preciso ‘sentir o clima’, sentir a pessoa e o momento. E assim as emoções serão nutridas com eficiência. Em muitos casos, segundo alguns escritores, “a inveja é admiração invertida”. Ou seja, a sensação negativa pode sugerir apenas que todos temos qualidades e pontos fracos, logo o cuidado maior é procurar ir além das aparências e se perguntar: “Isto é uma situação de risco? É apenas uma sensação de fracasso? Ou é uma simples forma de chamar atenção?”.
Minha amiga ficou perplexa, estas possibilidades não lhe passaram pela cabeça. Sabem por quê? Penso mas me calo: porque a intuição da minha amiga estava voltada ao seu umbigo, e não para o contexto na qual se movimentava. Intuição é importante e não se engana mesmo, mas minha amiga precisava ampliar seu poder de alcance para não ser injusta. Não podemos descartar a existência clara ou disfarçada da fofoca ou da inveja, mas partir para um julgamento particular e condenação generalizada é sempre muito mais pernicioso para quem sofre do que para quem faz sofrer a fofoca ou a inveja.
Todos nós precisamos de proteção, preservação (da integridade) e das relações amistosas só com quem temos afinidade. É uma escolha que nos convoca a respeitar as diferenças e, por consequência, a nos valorizar. Porém todos nós vivemos dentro da oportunidade de evoluir com nossas ações e exemplos. E assim diluímos, ao máximo, tanto a fofoca quanto a inveja.
Diante disso, decidimos: minha amiga procurará mudar partes do seu comportamento (talvez sendo mais elogiosa com os outros) e perceber como as pessoas vão reagir.
“Que bom!” – suspirei e desliguei o telefone.

Profa Claudia Nunes

Nada nunca é igual

  Nada nunca é igual   Enquanto os dias passam, eu reflito: nada nunca é igual. Não existe repetição. Não precisa haver morte ou decepçã...